Imaginar não faz mal. Pois imagine que você é uma mãe
das antigas. E sua filha vai se casar. Mãe responsável que você é, você a chama
e lhe diz: "Minha filha, você vai se casar. Desejo que seu casamento seja
durável. Casamento durável depende do amor. E você nada sabe sobre as
artimanhas do amor. O que você está sentindo agora não é amor; é paixão. Paixão
é fogo de palha. Acaba logo. Casamento não se sustenta com fogo que acaba logo.
Vou lhe ensinar o segredo do amor permanente, o fogo que não se apaga nunca.
Você deve aprender o segredo do fogo que faz o
coração do seu marido arder, no dia a dia. Pois bem, saiba que o caminho para o
coração de um homem passa pelo estômago. O casamento não se sustenta com o fogo
da cama. Ele se sustenta com o fogo da mesa. Vou lhe dar o presente mais
precioso, o "Livro de Dona Benta", centenas de receitas. Mas não só
isso, vou lhe ensinar todas as receitas desse livro maravilhoso." Ditas
essas palavras você, mãe, dá início a um programa de culinária, uma receita
depois da outra, na ordem certa. Cada dia sua filha deve aprender uma receita
e, uma vez por mês, você faz uma avaliação da aprendizagem. Ela deve ser capaz
de repetir as receitas.
É claro que isso que eu disse é uma tonteira. Ninguém
ensina a cozinhar assim. Não é possível saber todas as receitas. Por que ter de
saber todas as receitas, se elas estão escritas no livro de receitas? A gente
aprende uma receita quando fica com vontade de experimentar aquele prato nunca dantes
experimentado. O ato de aprender acontece em resposta a um desejo. "Quero
fazer, amanhã, uma ‘vaca atolada’. " Como é que se faz uma ‘vaca atolada’,
se nunca fiz? É só procurar no livro de receitas, sob o título ‘vaca atolada’.
A gente lê e aprende porque vai fazer ‘vaca atolada’...” Pois os programas de
aprendizagem a que nossas crianças e adolescentes têm de se submeter nas
escolas são iguais à aprendizagem de receitas que não vão ser feitas. Receitas
aprendidas sem que se vá fazer o prato são logo esquecidas. A memória é um
escorredor de macarrão. O escorredor de macarrão existe para deixar passar o
que não vai ser usado: passa a água, fica o macarrão. Essa é a razão por que os
estudantes esquecem logo o que são forçados a estudar. Não por falta de
memória. Mas porque sua memória funciona bem: não sei para que serve; deixo
passar...
Na "Escola da Ponte" a aprendizagem
acontece a partir de pratos que vão ser preparados e comidos. Por isso as
crianças aprendem e têm prazer em aprender. Mas, e o programa? É cumprido?
Pergunta tola. É o mesmo que perguntar se a jovem casadoira aprendeu todas as
receitas do "Livro de Dona Benta"... É claro que o "Livro de
Dona Benta" não é para ser aprendido.
Programas não podem ser aprendidos... São logo
escorridos. Quando visitei a "Escola da Ponte" o tema quente era a
descoberta do Brasil e tudo o mais que a cercava. As crianças estavam
fascinadas com os feitos dos navegadores seus antepassados nessa aventura, mais
ousada que a viagem dos astronautas à lua. Imagine agora que algumas crianças
tenham ficado curiosas diante do assombro tecnológico que tornou os
descobrimentos possíveis, as caravelas. Organizam-se num grupo para estudá-las.
Um diretor de escola rigoroso e cumpridor dos seus deveres torceria o nariz.
"O tema "caravelas" não consta de nenhum programa nem aqui e nem
em nenhum outro lugar do mundo", ele diria. E concluiria: "Não
constando de nenhum programa não deve ser objeto de estudo. Perda de tempo. Não
vai cair no vestibular." Acontece que uma caravela é um objeto no qual
estão entrelaçadas as mais variadas ciências. As caravelas são um laboratório
de física. Parece que a caravela brasileira, construída para comemorar o
descobrimento, teve de retornar ao ancoradouro, por perigo de emborcar. Um
famoso vaso de guerra sueco, o Wasa, se não me engano do século XVI, virou e
afundou depois de navegar por não mais que 400 metros . Retirado do
fundo do mar há cerca de 25 anos, ele pode ser visto hoje num museu de
Estocolmo. O que havia de errado com o Wasa e a caravela brasileira? O que
havia de errado tem, em física, o nome de "centro de gravidade". O
"centro de gravidade" estava no lugar errado. O tal centro de
gravidade é o que explica por que os bonequinhos chamados “João Teimoso"
não caem nunca! A regra é: para não emborcar, o centro de gravidade do navio
deve estar abaixo da linha do mar.
Essa é a razão por que os navios, freqüentemente, têm
necessidade de um lastro - um peso que faz com que o centro de gravidade se
desloque para mais baixo. "Se o centro de gravidade estiver fora do lugar,
o navio vira e afunda. Os estudantes aprendem, em física, como parte do
programa abstrato que têm de aprender, uma regra chamada do
"paralelogramo" - regra de composição de forças. Duas forças
incidindo sobre um ponto, uma delas F1, a outra F2, cada uma numa direção
diferente. Para onde se movimenta o objeto sobre o qual incidem? Nem na direção
de F1, nem na direção de F2. Diz essa regra que o objeto vai se movimentar numa
direção que se determina pela construção de um "paralelogramo". É o
que se chama de "resultante". Os alunos aprendem a resolver o
problema no papel, mas não sabem para que ele serve na vida. E o aprendido
escorre pelos furos do "escorredor de macarrão"... Pois é essa regra
que explica, teoricamente, o mistério de um barco que navega numa direção
contrária à do vento. Se o barco estivesse à mercê do vento ele só navegaria na
direção em que o vento sopra, situação essa que tornaria a navegação
impossível. Quem se aventuraria a navegar num barco que só navega na direção do
vento e não na direção que se deseja? Mas os navegadores descobriram que, com o
auxílio de uma outra força, de direção distinta da direção do vento, é possível
fazer com que o barco navegue na direção que se deseja. E é essa a função do
leme. O leme, pela resistência da água, cria uma outra força que, colocada no
ângulo adequado, produz a direção de navegação desejada. Os alunos aprenderiam
melhor se, ao invés de gráficos geométricos, eles fosse instruídos na arte da
navegação.
Da física passamos à história, a influência de
Veneza, dominadora do Mediterrâneo com seus barcos, sobre a tecnologia lusitana
de construção de caravelas. Da história para a astronomia, a ciência da
orientação pelas estrelas. O astrolábio. A bússola. Daí, para esses assombros
simbólicos chamados mapas - que só fazem sentido para o navegador se ele
conhecer a arte de se orientar, a direção do norte, mesmo quando nada pode ser
visto, a não ser o oceano que o cerca por todos os lados. (Olhando para a lua,
de noite, você é capaz de dizer a direção do sol?). Dos mapas para a literatura,
a "Carta de Pero Vaz de Caminha", a poesia de Camões, a poesia de
Fernando Pessoa: "Ó mar salgado, quando do seu sal são lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos quantas mães choraram, quantos filhos em vão rezaram! Quantas
noivas ficaram por casar para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale
a pena se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador tem de passar
além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o
céu."
Aceitemos um fato simples: um programa cumprido, dado
pelo professor do princípio ao fim, é só cumprido formalmente. Programa
cumprido não é programa aprendido " mesmo que os alunos tenham passado nos
exames. Os exames são feitos enquanto a água ainda não acabou de se escoar pelo
escorredor de macarrão. Esse é o destino de toda ciência que não é aprendida a
partir da experiência: o esquecimento.
Quanto à ciência que se aprende a partir da vida, ela
não é esquecida nunca. A vida é o único programa que merece ser seguido.
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