A menina que me guiava apontou para um computador num
canto da sala imensa: "É o computador do "Acho bom" e
do"Acho mal". Quando nos sentimos contentes com algo, escrevemos no
"Acho bom". Quando, ao contrário, nos sentimos infelizes, escrevemos
no "Acho mal". Examinei o "Acho mal". A curiosidade é sempre
espicaçada por coisas ruins. "Acho mal que o Tomás de estalos na cara da
Francisca". Pensei: "Ah! Tomás! Tu estás perdido! Todos já sabem o
que fazes! Se continuas, certamente terás de comparecer perante o Tribunal para
dares conta dos teus atos." E, no "Acho bom" estão os louvores
aos gestos e coisas boas.
Treinamento dos olhos e da fala. O normal é que os
olhos vejam mais as coisas ruins e que a boca tenha mais prazer em falar sobre
elas. Mas lá, na Escola da Ponte, as crianças são convidadas a ver o bom, o
bonito, o generoso, e a falar sobre eles.
Tribunal... A menina me havia falado sobre problemas
de disciplina. Para tais situações as crianças estabeleceram um tribunal.
Aquele que desrespeita as regras de convivência, por elas mesmas estabelecidas,
tem de comparecer perante esse tribunal. Sua primeira pena é pensar durante
três dias sobre os seus atos. Depois ele retorna, para dizer o que pensou.
Minha guia não me esclareceu sobre o que acontece com os impenitentes reincidentes.
Mas o culpado fui eu: não perguntei. Aí fomos para o refeitório. Havia um grupo
de alunos e professoras reunido à volta de uma mesa. "Estão a preparar a
assembléia de hoje. Temos uma assembléia que se reúne semanalmente para tratar
dos problemas da escola e para sugerir soluções. Aquele é o presidente",
ela me disse, apontando para um menino.
Ao fim do dia reuniu-se a assembléia. Fui convidado a
falar alguma coisa. Havia levado comigo um carrinho, feito com uma lata de
sardinha. Já escrevi sobre ele. Quando o vi pela primeira vez, numa exposição
de brinquedos na Bahia, fiquei tão impressionado que a dona da exposição m'o (
Meu Deus! Fiquei infectado pela maneira portuguesa erudita de falar! Para quem
não sabe: m'o = me + o ) deu como presente. Conversei com as crianças sobre o carrinho.
O que me interessava não era o carrinho. Era o processo de sua produção.
Brinquedo construído por um menino pobre que sonhava com um carrinho e não
tinha dinheiro para comprar. Se fosse rico, era só pedir para o pai - ele
compraria um carrinho eletrônico movido ao aperto de um botão, o que
desenvolveria o dedo e atrofiaria a inteligência. Dinheiro demais é
emburrecedor. Perguntei uma pergunta tola: "Em que loja se compra um
carrinho assim?" Esperava a resposta óbvia: "Esse carrinho não se compra
em lojas..." Uma menina levantou o dedo. O que ela disse me assombrou:
"Esse carrinho se compra na loja das mãos". "Loja das
mãos": ela me respondeu com poesia. Seguiu-se um período de perguntas.
Pasmem: em nenhum momento qualquer aluno interrompeu o outro. Isso é lei que as
crianças estabeleceram. Está escrito na lista de "Direitos e
Deveres".
Pensei que o senador Antônio Carlos Magalhães e o
deputado Jader Barbalho deveriam fazer um estágio na Escola da Ponte. Quem
desejava falar levantava na mão e aguardava a indicação do presidente. Às cinco
horas o presidente falou: "Já está na hora de terminar. Vou dar a palavra
para mais um colega e terminaremos." E assim foi. Ao final, vieram
conversar comigo. Uma menina me perguntou: "Tens mirk?" Nem sei se é
assim que se escreve. O fato é que eu nunca havia ouvido essa palavra. Ela me
explicou: "Aquele programa de computador que permite que se converse.
Quero conversar contigo..." Não. Eu não tinha mirk... Um menininho chegou
à minha frente segurando um chaveiro: uma correntinha com um pequeno sino na
ponta. Ficou olhando para mim. Perguntei: "E isso?" "Um presente
para ti", respondeu. Não me esquecerei do Sérgio... Sei que vocês devem
estar incrédulos. Como é possível uma escola assim, sem turmas, sem professores
e aulas de português, geografia, ciências, história, em lugares e horas
determinadas, de acordo com um programa, linha de montagem, com testes e
conceitos ao final? Será que as crianças aprendem?
Respondo fazendo uma pergunta: qual é a coisa mais
difícil de ser ensinada, mais difícil de ser aprendida, quem ensina não sabe
que está ensinando, quem aprende não sabe que está aprendendo e, ao final, a
aprendizagem acontece sempre? É a linguagem. Não existe nada, absolutamente
nada que se compare à linguagem em complexidade. No entanto, sem que haja qualquer ensino
formal, sem que os que ensinam a falar - pai, mãe, tio, avô, irmãos - tenham
tido aulas teóricas sobre a formação da linguagem, as crianças aprendem a
falar.
Imaginem que o ensino da linguagem se desse em
escolas, segundo os moldes de linha de montagem que conhecemos: aulas de
substantivos, aulas de adjetivos, aulas de verbos, aulas de sintaxe, aulas de
pronúncia. O que aconteceria? As crianças não aprenderiam a falar. Por que é
que a aprendizagem da linguagem é tão perfeita, sendo tão informal e tão sem ordem
certa? Porque ela vai acontecendo seguindo a experiência vital da criança: o
falar vai colado à experiência que está acontecendo no presente.
Somente aquilo que é vital é aprendido. Por que é que,
a despeito de toda pedagogia, as crianças têm dificuldades em aprender nas
escolas? Porque nas escolas o ensinado não vai colado à vida. Isso explica o
desinteresse dos alunos pela escola. Alguns me contestarão dizendo: "Mas o
meu filho adora a escola!” “Pergunto: Ele adora a escola por aquilo que está
aprendendo ou por outras razões?” Confesso não saber de um aluno que tenha
prazer em conversar com os pais sobre aquilo que está aprendendo na escola.
Explica também a indisciplina. Por que haveria uma criança de disciplinar-se,
se aquilo que ela tem de aprender não é aquilo que o seu corpo deseja saber? E
explica também a preguiça que sentem as crianças ao se defrontar com as lições
de casa. Roland Barthes tem um delicioso ensaio sobre a preguiça. Segundo ele há
dois tipos de preguiça. Um deles, abençoado, é a preguiça de quem está deitado
na rede de barriga cheia. Não quer fazer nada porque na rede está muito bom. O
outro tipo é a preguiça infeliz, ligado inseparavelmente à escola. O aluno se
arrasta sobre a lição de casa. Não quer fazê-la. A vida o está chamando numa
outra direção mais alegre. Mas ele não tem alternativas. É obrigado a fazer a
lição. Por isso ele se arrasta em sofrimento.
O conhecimento é uma árvore que cresce da vida. Sei
que há escolas que têm boas intenções, e que se esforçam para que isso
aconteça. Mas as suas boas intenções são abortadas porque são obrigadas a
cumprir o programa. Programas são entidades abstratas, prontas, fixas, com uma
ordem certa. Ignoram a experiência que a criança está vivendo. Aí tenta-se,
inutilmente, produzir vida a partir dos programas. Mas não é possível, a partir
da mesa de anatomia, fazer viver o cadáver. O que vi na Escola da Ponte é o conhecimento
crescendo a partir das experiências vividas pelas crianças.
Aí vocês me perguntarão: "Mas o programa é
cumprido?" Sobre isso falarei na próxima crônica.
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