Contei sobre a escola com sempre sonhei, sem imaginar
que pudesse existir. Mas existia, em Portugal...Quando a vi, fiquei alegre e
repeti, para ela, o que Fernando Pessoa havia dito para uma mulher amada:
"Quando te vi, amei-te já muito antes..." Gente de boa memória jamais
entenderá aquela escola. Para entender é preciso esquecer quase tudo o que
sabemos. A sabedoria precisa de esquecimento. Esquecer é livrar-se dos jeitos
de ser que se sedimentaram em nós, e que nos levam a crer que as coisas têm de
ser do jeito como são. Não. Não é preciso que as coisas continuem a ser do
jeito como sempre foram.
Como são e têm sido as escolas? Que nos diz a memória?
A imagem: uma casa, várias salas, crianças separadas em grupos chamados
"turmas". Nas salas os professores ensinam saberes. Toca uma
campainha. Terminou o tempo da aula. Os professores saem. Outros entram. Começa
uma nova aula. Novos saberes são ensinados. O que é que os professores estão
fazendo? Estão cumprindo um "programa". "Programa" é um
cardápio de saberes organizados em seqüência lógica, estabelecido por uma
autoridade superior invisível, que nunca está com as crianças. Os saberes dos
cardápio "programa" não são "respostas" às perguntas que as
crianças fazem. Por isso as crianças não entendem por que têm de aprender o que
lhes está sendo ensinado. Nunca vi uma criança questionar a aprendizagem do
falar. Uma criancinha de oito meses já está doidinha para aprender a falar. Ele
vê os grandes falando entre si, falando com elas, sentem que falar é uma coisa
divertida e útil, e logo começam a ensaiar a fala, por conta própria. Fazem de
conta que estão falando. Balbuciam. Brincam com os sons. E quando conseguem
falar a primeira palavra, sentem a alegria dos que a cercam. E vão aprendendo,
sem que ninguém lhes diga que elas têm de aprender a falar e sem que o
misterioso processo de ensino e aprendizagem da fala esteja submetido a um
programa estabelecido por autoridades invisíveis. Elas aprendem a falar porque
o falar é parte da vida.
Nunca ninguém me disse que eu deveria aprender a
descascar laranjas. Aprendi porque via o meu pai descascando laranjas com uma
mestria ímpar, sem arrebentar a casca e sem ferir a laranja, e eu queria fazer
aquilo que ele fazia. Aprendi sem que me fosse ensinado. A arte de descascar
laranjas não se encontra em programas de escola. O corpo tem uma precisa
filosofia de aprendizagem: ele aprende os saberes que o ajudam a resolver os problemas
com que está se defrontando. Os programas são uma violência que se faz com o
jeito que o corpo tem de aprender. Não admira que as crianças e adolescentes se
revoltem contra aquilo que os programas os obrigam a aprender. Ainda ontem uma
amiga me dizia que sua filha, de 10 anos, lhe dizia: "Mãe, por que tenho
de ir à escola? As coisas que tenho de aprender não servem para nada. Que me
adianta saber o que significa "oxítona"? Prá que serve esta
palavra?" A menina sabia mais que aqueles que fizeram os programas.
Vamos começar do começo. Imagine o homem primitivo,
exposto à chuva, ao frio, ao vento, ao sol. O corpo sofre. O sofrimento faz
pensar: "Preciso de abrigo", ele diz. Aí, forçada pelo sofrimento, a
inteligência entra em ação. Pensa para deixar de sofrer. Pensando, conclui:
"Uma caverna seria um bom abrigo contra a chuva, o frio, o vento, o
sol..." Instruídos pela inteligência os homens procuram uma caverna e
passam a morar nela. Resolvido o sofrimento, a inteligência volta a dormir. Mas
aí, forçados ou pela fome ou por um grupo armado que lhes toma a caverna, eles
são forçados a se mudar para uma planície onde não há cavernas. O corpo volta a
sofrer. O sofrimento acorda a inteligência e faz com que ela trabalhe de novo.
A solução original não serve mais: não há cavernas. A inteligência pensa e conclui:
"É preciso construir uma coisa que faça às vezes de caverna. Essa coisa
tem de ter um teto, para proteger do sol e da chuva. Tem de ter paredes, para
proteger do vento e do frio. Com que se pode fazer um teto?"
A inteligência se põe então a procurar um material
que sirva para fazer o teto. Folhas de palmeira? Capim? Pedaços de pau? Mas o
teto não flutua no ar. Tem de haver algo que o sustente. Paus fincados? Sim.
Mas para fincar um pau é preciso descobrir uma ferramenta para cortar o pau.
Depois, uma ferramenta para fazer o buraco na terra. E assim vai a
inteligência, inventando ferramentas e técnicas, à medida em que o corpo se
defronta com necessidades práticas. A inteligência, entre os esquimós, jamais
pensaria uma casa de pau-a-pique. Entre eles não há nem madeira e nem barro. Produziu
o iglu. E a inteligência do homem que vive na floresta jamais pensaria um iglu
- porque nas florestas não há gelo. Produziu a casa de pau-a-pique. A
inteligência é essencialmente prática. Está a serviço da vida.
Um exercício fascinante a se fazer com as crianças
seria provocá-las para que elas imaginassem o nascimento dos vários objetos que
existem numa casa. Todos os objetos, os mais humildes, têm uma história para
contar. Que necessidade fez com que se inventassem panelas, facas, vassouras, o
fósforo, a lâmpada, as garrafas, o fio dental?... Quais poderiam ter sido os
passos da inteligência, no processo de inventá-los? Quem é capaz de, na fantasia,
reconstruir a história da invenção desses objetos, fica mais inteligente.
Depois de inventados, eles não precisam ser
inventados de novo. Quem inventou passa a possuir a receita para a sua
fabricação. E é assim que as gerações mais velhas passam para seus filhos as receitas
de técnicas que tornam possível a sobrevivência. Esse é o seu mais valioso
testamento: um saber que torna possível viver. As gerações mais novas, assim,
são poupadas do trabalho de inventar tudo de novo. E os jovens aprendem com
alegria as lições dos mais velhos: porque suas lições os fazem participantes do
processo de vida que une a todos. A aprendizagem da linguagem se dá de forma
tão eficaz porque a linguagem torna a criança um membro do grupo: ela participa
da conversa, fala e os outros ouvem, ri das coisas engraçadas que se dizem. O
mesmo pode ser dito da aprendizagem de técnicas: o indiozinho que aprende a
fabricar e a usar o arco e a flecha, a construir canoas e a pescar, a andar sem
se perder na floresta, a construir ocas, está se tornando num membro do seu
grupo, reconhecido por suas habilidades e por sua contribuição à sobrevivência
da tribo. O que ele aprende e sabe, faz sentido. Ele sabe o uso dos seus
saberes. (A menininha não sabia o uso da palavra "oxítona". Nem eu.
Sei o que ela quer dizer. Não sei para que serve. Quando eu escrevo nunca penso
em "oxítona". Ninguém que fale a língua, por ignorar o sentido de
"oxítona", vai falar "cáfe", ao invés de café, ou
"chúle", ao invés de "chulé"... A palavra
"oxítona" não me ensina a falar melhor. É, portanto, inútil....) Disse,
numa outra crônica, que quero escola retrógrada. Retrógrado quer dizer
"que vai para trás". Quero uma escola que vá mais para trás dos "programas"
científica e abstratamente elaborados e impostos. Uma escola que compreenda
como os saberes são gerados e nascem. Uma escola em que o saber vá nascendo das
perguntas que o corpo faz. Uma escola em que o ponto de referência não seja o
programa oficial a ser cumprido (inutilmente!), mas o corpo da criança que
vive, admira, se encanta, se espanta, pergunta, enfia o dedo, prova com a boca,
erra, se machuca, brinca. Uma escola que seja iluminada pelo brilho dos
inícios.
Mas, repentinamente, desfaz-se o encanto da perda da
memória e nos lembramos da pergunta: "Mas, e o programa? Ele é cumprido?"
Depois eu respondo.
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