Imagino que você, que procura minhas crônicas aos
domingos, deve estar cansado. Pois este é o quinto domingo em que falo sobre a
mesma coisa. Pessoas que falam sempre sobre as mesmas coisas são chatas. Além do
que essa insistência em uma coisa só é contrária ao estilo de crônicas.
Crônicas, para serem gostosas, devem refletir a
imensa variedade da vida. Um cronista é um fotógrafo. Ele fotografa com
palavras. Crônicas são dádivas aos olhos. Ele deseja que os leitores vejam a
mesma coisa que ele viu. Se normalmente não sou chato, deve haver alguma razão
para essa insistência em fotografar uma mesma coisa. Quem fotografa um mesmo
objeto repetidas vezes deve estar apaixonado. Comporta-se como os fotógrafos de
modelos, clic, clic, clic, clic, clic...: dezenas, centenas de fotos, cada uma
numa pose diferente! Um dos meus pintores favoritos é Monet. Pois ele fez essa
coisa insólita: pintou um monte de feno muitas vezes. E o curioso é que ele nem
mudou de lugar, não procurou ângulos diferentes. Ficou assentado no seu
banquinho, cavalete no mesmo lugar, e foi pintando, pintando. Porque, na
verdade, o que ele estava pintando não era o monte de feno, uma coisa banal, de
gosto bovino. O que ele estava pintando era a luz. Ele só usou o monte de feno
como espelho onde a luz aparecia refletida, não como uma coisa fixa, mas como
uma coisa móvel. A série de telas do monte de feno bem que poderia chamar-se
"Strip tease da luz": devagar, bem devagar, ela vai se desnudando...
Pois estou fazendo com as minhas crônicas o que Monet
fez: ele, diante do monte de feno; eu, diante de uma pequena escola por que me
apaixonei -- pois ela é a escola com que sempre sonhei sem ter sido capaz de
desenhar.
Nunca fui professor primário. Fui professor
universitário. O Vinícius, descrevendo a bicharada saindo da Arca de Noé,
disse: "Os fortes vão na frente tendo a cabeça erguida e os fracos,
humildemente, vão atrás, como na vida..." Pois é exatamente assim que
acontece na Arca de Noé dos professores: os professores universitários vão na
frente tendo a cabeça erguida, e os primários, humildemente, vão atrás, como na
vida... Professor universitário é doutor, cientista, pesquisador, publica em
revistas internacionais artigos em inglês sobre coisas complicadas que ninguém
mais sabe e são procurados como assessores de governo e de empresas. Professor primário
é professor de 3ª classe, não precisa nem ter mestrado nem falar inglês, dá
aulas para crianças sobre coisas corriqueiras que todo mundo sabe. Crianças --
essas coisinhas insignificantes, que ainda não são... Haverá atividade mais
obscura? Professores universitários gostam das luzes do palco. Professores
primários vivem na sombra...
Quando entrei na universidade para ser professor
senti-me muito importante. Com o passar do tempo fui sendo invadido por uma
grande desilusão – tédio --, um cansaço diante da farsa. Partilhei da desilusão
dos alunos que se sentiram muito importantes quando passaram no vestibular e
até ficaram felizes quando os veteranos lhes rasparam o cabelo. Cabelo raspado
é distintivo: "Passei! Passei!" Não levou muito tempo para que
descobrissem que a universidade nada tinha que ver com os seus sonhos. E essa é
a razão por que fazem tanta festa e foguetório quando tiram o diploma. Fim do sofrimento
sem sentido.
A velhice me abriu os olhos. Quando se chega no topo,
quando não há mais degraus para subir, a gente começa a ver com uma clareza que
não tinha antes. "Tenho a lucidez de quem está para morrer", dizia
Fernando Pessoa na "Tabacaria". Fiquei lúcido! E o que vi com clareza
foi o mesmo que viu Joseph Knecht, o personagem central do livro de Hesse “O
jogo das contas de vidro”: depois de chegar no topo, percebeu o equívoco. E
surgiu, então, o seu grande desejo: ensinar uma criança, uma única criança que
ainda não tivesse sido deformada (essa é a palavra usada por Hesse) pela
escola. Também eu: quero voltar para as crianças. A razão? Por elas mesmas. É
bom estar com elas. Crianças têm um olhar encantado. Visitando uma reserva florestal
no estado do Espírito Santo, a bióloga encarregado do programa de educação
ambiental me disse que é fácil lidar com as crianças. Os olhos delas se
encantam com tudo: as formas das sementes, as plantas, as flores, os bichos.
Tudo, para elas, é motivo de assombro. E acrescentou: "Com os adolescentes
é diferente. Eles não têm os olhos para as coisas. Eles só têm olhos para eles
mesmos..." Eu já tinha percebido isso. Os adolescentes já aprenderam a
triste lição que se ensina diariamente nas escolas: Aprender é chato. O mundo é
chato. Os professores são chatos. Aprender, só sob ameaça de não passar no
vestibular.
Por isso quero ensinar as crianças. Elas ainda têm
olhos encantados. Seus olhos são dotados daquela qualidade que, para os gregos,
era o início do pensamento: a capacidade de se assombrar diante do banal. Tudo
é espantoso: um ovo, uma minhoca, um ninho de guaxo, uma concha de caramujo, o voo
dos urubus, o zunir das cigarras, o coaxar dos sapos, os pulos dos gafanhotos, uma
pipa no céu, um pião na terra. Dessas coisas, invisíveis aos eruditos olhos dos
professores universitários (eles não podem ver, coitados; a especialização
tornou-os cegos como toupeiras, só vêem dentro do espaço escuro de suas rocas
-- e como vêem bem!), nasce o espanto diante da vida; desse espanto, a
curiosidade; da curiosidade, a fuçação (essa palavra não está no Aurélio)
chamada pesquisa; dessa fuçação, o conhecimento; e do conhecimento, a alegria!
Pensamos que as coisas a serem aprendidas são aquelas
que constam dos programas. Essa é a razão por que os professores devem preparar
seus planos de aula. Mas as coisas mais importantes não são ensinadas por meio
de aulas bem preparadas. Elas são ensinadas inconscientemente. Bom seria que os
educadores lessem ruminativamente (também não se encontra no Aurélio) o Roland
Barthes. Ele descreveu o seu ideal de aula como sendo a criação de um espaço --
isso mesmo! Um espaço! -- parecido com aquele que existe quando uma criança
brinca ao redor da mãe. A criança pega um botão leva para a mãe. A mãe ri, e
faz um corrupio (você sabe o que é um corrupio?). Pega um pedaço de barbante.
Leva para a mãe. A mãe ri e lhe ensinar a fazer nós. Ele conclui que o
importante não é nem o botão nem o barbante, mas esse espaço lúdico que se
ensina sem que se fale sobre ele.
Na Escola da Ponte o mais importante que se ensina é
esse espaço. Nas nossas escolas: salas separadas -- o que se ensina é que a
vida é cheia de espaços estanques; turmas separadas e hierarquizadas -- o que
se ensina é que a vida é feita de grupos sociais separados, uns em cima dos
outros. Conseqüência prática: a competição entre as turmas, competição que
chega à violência (os trotes!). Saberes ministrados em tempos definidos, um
após o outro: o que se ensina é que os saberes são compartimentos estanques (e depois
reclamam que os alunos não conseguem integrar o conhecimento. Apelam então para
a "transdisciplinaridade", para corrigir o estrago feito. O que me
faz lembrar um filme de O Gordo e o Magro. Ainda falo sobre o tal filme, Queijo
Suíço...). Ah! Uma vez cometido o erro arquitetônico, o espírito da escola já
está determinado! Mas nem arquitetos nem técnicos da educação sabem disso...
Escola da Ponte: um único espaço, partilhado por
todos, sem separação por turmas, sem campainhas anunciando o fim de uma
disciplina e o início da outra. A lição social: todos partilhamos de um mesmo
mundo. Pequenos e grandes são companheiros numa mesma aventura. Todos se
ajudam. Não há competição. Há cooperação. Ao ritmo da vida: os saberes da vida
não seguem programas. É preciso ouvir os "miúdos", para saber o que
eles sentem e pensam. É preciso ouvir os "graúdos", para saber o que
eles sentem e pensam. São as crianças que estabelecem as regras de convivência:
a necessidade do silêncio, do trabalho não perturbado, de se ouvir música enquanto
trabalham. São as crianças que estabelecem os mecanismos para lidar com aqueles
que se recusam a obedecer às regras. Pois o espaço da escola tem de ser como o
espaço do jogo: o jogo, para ser divertido e fazer sentido, tem de ter regras.
Já imaginaram um jogo de vôlei em que cada jogador pode fazer o que quiser? A
vida social depende de que cada um abra mão da sua vontade, naquilo em que ela
se choca com a vontade coletiva. E assim vão as crianças aprendendo as regras
da convivência democrática, sem que elas constem de um programa...
Minha cabeça está coçando com o sonho de fazer uma
escola parecida... Você matricularia seu filho numa escola assim? Mande sua
resposta com suas razões para rubem@correionet.com.br -- estou curioso! Mas, para
fazer essa escola, tenho de resolver primeiro um problema: como é que o graxo
coloca o primeiro graveto para construir o seu ninho?