A crônica
é um gênero que oscila entre o jornalismo e a literatura, um texto
híbrido, de certa forma, que permitte ao emissor trabalhar a questão da
linguagem de forma plena e diversificada, fazendo uso, sobretudo, do
sentido denotativo, de recursos estilísticos, imagens, símbolos, enfim,
um gênero, digamos assim, não tão engessado ao se comparar com um texto
de opinião, por exemplo, o qual segue aquela estrutura rígida.
Um texto pronto, constituído da eficácia
necessária para ser explorado no ambiente de sala de aula, sem dúvida.
No entanto, um questionamento parece pairar e se revelar como
importante, já que nossa discussão pende para as propostas aplicáveis a
esse contexto, cujo intuito se revela tão somente para o enriquecer dos
conhecimentos dos aprendizes e, consequentemente, para o conquistar dos
intentos a que se propõe o educador. Tal questionamento diz respeito ao
fato se realmente os alunos estão aptos para produzir essa modalidade
textual e, assim, fazer com que o evento realmente aconteça.
Pois bem, caro(a) educador(a), afirmar
que esse público ainda não se encontra preparado para ler nas
entrelinhas, para decifrar o indizível, enfim, para compreender as
nuances discursivas expressas na crônica parece não ser tão descabido
assim. Dessa forma, não é de se assustar que uma preparação resulta em
um procedimento mais cabível a esse caso. Assim, para começar, nada
melhor que uma leitura coletiva, compassada de duas crônicas, ambas de
autoria de Affonso Romano de Sant’Anna, que estão dispostas abaixo:
Porta de colégio
Passando
pela porta de um colégio, me veio uma sensação nítida de que aquilo era
a porta da própria vida. Banal, direis. Mas a sensação era tocante. Por
isto, parei, como se precisasse ver melhor o que via e previa.
Primeiro
há uma diferença de clima entre aquele bando de adolescentes espalhados
pela calçada, sentados sobre carros, em torno de carrocinhas de doces e
refrigerantes, e aqueles que transitam pela rua. Não é só o uniforme.
Não é só a idade. É toda uma atmosfera, como se estivessem ainda dentro
de uma redoma ou aquário, numa bolha, resguardados do mundo. Talvez não
estejam. Vários já sofreram a pancada da separação dos pais. Aprenderam
que a vida é também um exercício de separação. Um ou outro já transou
droga, e com isto deve ter se sentido (equivocadamente) muito adulto.
Mas há uma sensação de pureza angelical misturada com palpitação sexual,
que se exibe nos gestos sedutores dos adolescentes. Ouvem-se gritos e
risos cruzando a rua. Aqui e ali um casal de colegiais, abraçados,
completamente dedicados ao beijo. Beijar em público: um dos ritos de
quem assume o corpo e a idade. Treino para beijar o namorado na frente
dos pais e da vida, como que diz: também tenho desejos, veja como sei
deslizar carícias.
Onde estarão esses meninos e meninas dentro de dez ou vinte anos?
Aquele
ali, moreno, de cabelos longos corridos, que parece gostar de esportes,
vai se interessar pela informática ou economia; aquela de cabelos loiros
e crespos vai ser dona de butique; aquela morena de cabelos lisos quer
ser médica; a gorduchinha vai acabar casando com um gerente de
multinacional; aquela esguia, meio bailarina, achará um diplomata.
Algumas estudarão Letras, se casarão, largarão tudo e passarão parte do
dia levando filhos à praia e praça e pegando-os de novo à tardinha no
colégio. Sim, aquela quer ser professora de ginástica. Mas nem todos têm
certeza sobre o que serão. Na hora do vestibular resolvem. Têm tempo. É
isso. Têm tempo. Estão na porta da vida e podem brincar.
Aquela
menina morena magrinha, com aparelho nos dentes, ainda vai engordar e
ouvir muito elogio às suas pernas. Aquela de rabo-de-cavalo, dentro de
dez anos se apaixonará por um homem casado. Não saberá exatamente como
tudo começou. De repente, percebeu que o estava esperando no lugar onde
passava na praia. E o dia em que foi com ele ao motel pela primeira vez
ficará vivo na memória.
É
desagradável, mas aquele ali dará um desfalque na empresa em que será
gerente. O outro irá fazer doutorado no exterior, se casará com
estrangeira, descasará, deixará lá um filho - remorso constante. Às
vezes lhe mandará passagens para passar o Natal com a família
brasileira.
A
turma já perdeu um colega num desastre de carro. É terrível, mas
provavelmente um outro ficará pelas rodovias. Aquele que vai tocar rock
vários anos até arranjar um emprego em repartição pública. O
homossexualismo despontará mais tarde naquele outro, espantosamente,
logo nele que é já um don juan. Tão desinibido aquele, acabará líder
comunitário e talvez político. Daqui a dez anos os outros dirão: ele
sempre teve jeito, não lembra aquela mania de reunião e diretório?
Aquelas duas ali se escolherão madrinhas de seus filhos e morarão no
mesmo bairro, uma casada com engenheiro da Petrobrás e outra com um
físico nuclear. Um dia, uma dirá à outra no telefone: tenho uma coisa
para lhe contar: arranjei um amante. Aconteceu. Assim, de repente. E o
mais curioso é que continuo a gostar do meu marido.
Se fosse haver alguma ditadura no futuro, aquele ali seria guerrilheiro, mas esta hipótese deve ser descartada.
Quem
estará naquele avião acidentado? Quem construirá uma linda mansão e um
dia convidará a todos da turma para uma grande festa rememorativa? Ah, o
primeiro aborto! Aquele ali descobrirá os textos de Clarice Lispector e
isto será uma iluminação para toda a vida. Quantos aparecerão na
primeira página do jornal? Qual será o tranquilo comerciante e quem
representará o país na ONU?
Estou
olhando aquele bando de adolescentes com evidente ternura. Pudesse
passava a mão nos seus cabelos e contava-lhes as últimas estórias da
carochinha antes que o lobo feroz assaltasse na esquina. Pudesse lhes
diria daqui: aproveitem enquanto estão no aquário e na redoma, enquanto
estão na porta da vida e do colégio. O destino também passa por aí. E a
gente pode às vezes modificá-lo.
Torna-se essencial que o educador, no
momento da leitura, franqueie o espaço para retomadas dos pontos mais
relevantes, ou seja, dos pontos em que o fazer literário se mostra ainda
com mais vivacidade, demarcados por aqueles trechos em que temos a
oportunidade de refletir com o emissor acerca daquilo que ele
intencionalmente nos apresenta. Fazendo isso, parece que há um
envolvimento maior dos aprendizes mediante o discurso manifestado, haja
vista que lhes possibilita esse conviver com as marcas literárias, uma
vez preconizadas como fonte de entretenimento, de fruição, de prazer
estético. Além de tais percepções, o fato de o autor extrair flagrantes
do cotidiano e fazer deles um instrumento de reflexão, como é o caso da
juventude e os futuros rumos tomados por esse grande público, torna-se
imprescindível e, como dizem por aí, “meio caminho andado” para
realmente se tornarem hábeis para a produção desse tipo de gênero, tão
importante quanto necessário, em se tratando da produção escrita.
A outra crônica, ainda que demarcada somente por fragmentos, aparece intitulada: O homem que conheceu o amor:
O homem que conheceu o amor
Do alto
de seus oitenta anos, me disse: “na verdade, fui muito amado.” E dizia
isto com tal plenitude como quem dissesse: sempre me trouxeram flores,
sempre comi ostras à beira-mar.
Não
havia arrogância em sua frase, mas algo entre a humildade e a petulância
sagrada. Parecia um pintor que, olhando o quadro terminado, assina seu
nome embaixo. Havia um certo fastio em suas palavras e gestos. Se
retirava de um banquete satisfeito. Parecia pronto para morrer, já que
sempre estivera pronto para amar.
Se eu
fosse rei ou prefeito teria mandado erguer-lhe uma estátua. Mas, do
jeito que falava, ele pedia apenas que no seu túmulo eu escrevesse:
“aqui jaz um homem que amou e foi muito amado”. E aquele homem me
confessou que amava sem nenhuma coerção. Não lhe encostei a faca no
peito cobrando algo. Ele que tinha algo a me oferecer. Foi muito
diferente daqueles que não confessam seus sentimentos nem mesmo debaixo
de um “pau de arara”: estão ali se afogando de paixão, levando choques
de amor, mas não se entregam. E, no entanto, basta-lhes a ficha que está
tudo lá: traficante ou guerrilheiro do amor. Uns dizem: casei várias
vezes. Outros assinalam: fiz vários filhos. Outro dia li numa revista um
conhecido ator dizendo: tive todas as mulheres que quis. Outros, ainda,
dizem: não posso viver sem fulana (ou fulano). Na Bíblia está que
Abraão gerou Isaac, Isaac gerou Jacó e Jacó gerou as doze tribos de
Israel. Mas nenhum deles disse: “Na verdade, fui muito amado”.[...]
Novamente um assunto relacionado à falta
de percepção das pessoas no sentido de não perceberem, assim como
deveriam, como elas são amadas. Assim, a importância de viver
intensamente, de disseminar o amor aos quatro cantos mais uma vez se faz
representada por meio dessa intensa proposta reflexiva proporcionada
por esse renomado cronista, Affonso Romano. Dessa forma, mestre, seu
trabalho em sala de aula tende a se tornar altamente proveitoso, a
partir do instante que incutir nos aprendizes essas percepções
demarcadas por meio da leitura de uma crônica. Aprimoradas tais
habilidades, eis o grande momento de propor um concurso de crônicas, o
qual irá propiciar a oportunidade de as produções serem apresentadas
numa mostra cultural, futuramente realizada pelo educador.
A mostra cultural oportuniza grandes revelações de habilidades *
É importante ter consciência de que essa
proposta precisa ser vista como um investimento realizado em médio
prazo, digamos assim, pois há a necessidade de promover o tempo
necessário para que os alunos componham os textos, sob a orientação
indispensável do educador, “aparando arestas”, sugerindo ideias,
corrigindo as possíveis falhas que porventura houver e, de certa forma,
deixando os artistas preparados para um dia de autógrafos, quem sabe?
Afinal, a mostra cultural nos permite conviver com tais regalias, não é
verdade?
Por Vânia Duarte
Graudada em Letras