domingo, 3 de novembro de 2013

Dica de leitura: O Processo, de Franz Kafka

Na manhã em que completa 30 anos, Josef K é visitado no quarto de pensão onde mora por dois sujeitos que o informam de que está preso. Os homens se recusam a revelar a natureza da acusação e comunicam ao réu que ele poderá responder ao inquérito em liberdade, desde que se apresente para interrogatórios periódicos no tribunal. É esse o argumento inicial de O Processo (1925), romance que Franz Kafka (1883-1924) - advogado que se ocupou vários anos de um ofício burocrático em uma companhia de seguros e se tornou, segundo o filósofo francês Jean-Paul Sartre, "pai da literatura moderna" - nunca concluiu.

Nascido em Praga, quando a cidade ainda pertencia ao Império Austro-Húngaro (hoje a cidade pertence à República Tcheca), Kafka cresceu sob a influência de três culturas: a judaica, a alemã e a tcheca. Essa identidade multifacetada fez com que ele se sentisse, muitas vezes, estrangeiro em sua própria terra. A sensação de alheamento (somada a uma relação conturbada com o pai autoritário) é traço marcante de sua biografia e teve intenso reflexo em sua produção literária, publicada em grande parte postumamente por seu amigo Max Brod. Em A Metamorfose (1915), um de seus escritos mais conhecidos, a sensação de inadequação é levada ao extremo: o protagonista, o caixeiro-viajante Gregor Samsa, desperta certa manhã transformado em inseto.

Em sua curta existência, Kafka teve contato com as pesadas engrenagens da burocracia e da Justiça estatais. Com elas, formou o esteio de obras como Na Colônia Penal (1914), O Castelo (1926) e, claro, O Processo. Em comum, os livros compartilham o drama de personagens que se veem tolhidos por forças a um só tempo arbitrárias e desconhecidas.

Para o crítico literário alemão Wolfgang Kayser, a saga desses personagens reflete "a estranheza que não provém do eu, mas da essência do mundo eda falta de concordância entre ambos". Ou seja, percebe-se, nessas histórias, o desespero do homem diante do absurdo que parece rodeá-lo. Em O Processo, Joseph K aflige-se com a falta de sentido que lhe corrói a vida. Seus relacionamentos afetivos são artificiais e seu cotidiano, metódico e vazio. É o processo que faz com que K desperte para a própria existência: ele ensaia um relacionamento amoroso com sua vizinha e busca ajuda de outras pessoas, na vã esperança de se livrar do inquérito.

Do ponto de vista histórico, O Processo pode ser considerado uma antevisão do nazismo, cujas raízes já podiam ser sentidas durante a vida de Kafka. A ascensão do nacional-socialismo e o antissemitismo convertido numa indústria de morte a condenar réus baseada no argumento despropositado da raça acabaram tornando-se o contraponto amargo e realda alegoria kafkiana.

A narrativa do romance é marcada pela mistura do real e do simbólico, pelo mergulho no inconsciente e pelo emprego de metáforas que por vezes podem soar exageradas ou grotescas - procedimentos que se repetem em toda a obra do autor. O uso desses recursos o situa dentro da escola expressionista, movimento estético focado na expressão da angústia, dador e do mal-estar do ser humano perante a realidade lhe que escapa.

Mas o escritor é tão singular em seu universo literário que o termo "kafkiano" alcançou as páginas dos dicionários, como sinônimo de algo evocatório de uma atmosfera de pesadelo, de absurdo, em um contexto que se furta à lógica ou à sensatez. Ou, como observou o crítico americano Harold Bloom, "a expressão kafkiano se tornou um termo universal para o que Freud chamou de ‘o fantástico’, uma coisa ao mesmo tempo conhecida e estranha para nós".

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